Velhas lojas com novos usos no Bairro
Lisboa. A livraria Alêtheia abriu há menos de um mês no espaço de uma antiga padaria. No Bairro Alto são várias as lojas que mantêm elementos que atravessam gerações. O DN foi conhecer algumas.
RUI PEDRO ANTUNES
Os azulejos brancos, os armários típicos e o balcão de lioz não deixam dúvidas: no número 13 da Rua do Século já se vendeu pão porém, hoje em vez de papos-secos vendidos por meia dúzia de tostões ou alguns mil réis, estão livros de Fernando Pessoa, Camilo Castelo Branco ou Fiodor Dostoievski. A Alêtheia, editora de Zita Seabra, assentou arrais numa antiga padaria do Bairro Alto, mas decidiu manter muitos dos aspectos originais. A ideia não é nova e como explica uma das administradoras da Alêtheia, Alexandra Louro,"faz parte do espírito do Bairro".
A reconversão do espaço foi, segundo Alexandra Louro, "um sucesso”.
A "nova cara" que a Alêtheia deu à padaria oitocentista é uma mudança que acompanha a estratégia da editora em época de crise. "Temos de nos reinventar em tempo de crise, e se editamos livros, porque não vendê-los?", questiona Alexandra Louro.
Não fossem os livros estar em todo o lado e qualquer visitante podia andar à procura do pão, pois até os cheiros a novo e a livro se assemelham ao odor do pão acabado de fazer. A decoração está assim em consonância com a diferença que a Alêtheia quer marcar."Este é um espaço alternativo às outras livrarias que são inundadas de novidades. Aqui não vão encontrar Paulo Coelho", garante.
A livraria está dividida por salas e cada um destes espaços tem uma pequena curiosidade. Numa delas, um velho forno e a mais antiga máquina de mistura de cereais da capital (que "já quiseram tirar daqui para levar para um museu"), coabitam com António Lobo Antunes e José Eduardo Agualusa.
E se nos bastidores Zita Seabra tem um calmo escritório, onde se faz acompanhar por um excerto da Divina Comédia de Dante embutido na parede, numa outra sala da livraria a sua obra Foi assim faz-se acompanhar de livros de Mao, Fidel ou Estaline. Não é coincidência: nesse espaço, há uma porta que não dá para lado algum. A fuga tem de ser feita pelos livros ou seguindo o chão de cerâmica oitocentista, idêntico ao do Grémio Literário...
Bonés na arca refrigeradora
A Alêtheia é o exemplo mais recente de reabilitação do espaço, mantendo parte da sua decoração inicial, mas não é único no Bairro Alto. Seguindo a"tradição"apesar de mudarem de ramo, vários comerciantes vão deixando nos espaços as características de outrora. Foi o que aconteceu na Rua do Norte com uma antiga mercearia que agora é uma loja de acessórios.
Da antiga mercearia sobrevive uma arca frigorífica, onde agora estão expostos vários bonés coloridos. Tiago Martins, que ali trabalha, não tem dúvidas que esta opção estética foi tomada "para fazer algo kitsh e para manter o espírito do Bairro". Aquele espaço também já foi um talho e, por isso, no tecto estão malas presas por ganchos "tal como os nacos de carne", explica o funcionário. No fundo da loja, o letreiro luminoso que invoca "Fresh Meat" é mais um dos elementos que denuncia que o passado não só foi mantido como também foi adaptado como conceito, pois toda a loja se assemelha a uma mercearia/talho.
Além de seguir o tantas vezes referido"espírito do Bairro", o grande motivo para deixar vestígios antigos é o marketing. Os velhos portões da entrada e as desgastadas ombreiras das portas da loja da Eastpak, num dos extremos da rua do Norte, são os resquícios de uma velha carpintaria. O ar envelhecido é marketing para atrair visitantes. O lojista Ricardo Martins explica que a loja "já esteve toda limpinha, mas voltou ao aspecto degrado para seguir o conceito da marca built to resist , em que os produtos são construídos para resistirem mais tempo que os próprios edifícios. As paredes negras e desgastadas da antiga carpintaria fazem sobressair o aspecto das coloridas mochilas e Ricardo Martins observa que esta estética "resulta e atrai bastantes pessoas ao espaço".
Alfredo Oliveira, talhante que viu o Bairro Alto mudar nos últimos 60 anos (ver caixa), lembra quando frequentava uma "casa de meninas, conhecida como quartel-general , porque iam lá todos os tropas e os marinheiros". Nesse tempo, o Bairro tinha má fama ("e proveito") e era associado à prostituição. São estes rótulos negativos que hoje se apagam, ao mesmo tempo que procura manter alguma da sua genuinidade. Há objectos que sobrevivem em espaços diferentes e o Bairro continua vivo.
O "ESPIRITO" DE MUDANÇA
Lisboa. A livraria Alêtheia abriu há menos de um mês no espaço de uma antiga padaria. No Bairro Alto são várias as lojas que mantêm elementos que atravessam gerações. O DN foi conhecer algumas.
RUI PEDRO ANTUNES
Os azulejos brancos, os armários típicos e o balcão de lioz não deixam dúvidas: no número 13 da Rua do Século já se vendeu pão porém, hoje em vez de papos-secos vendidos por meia dúzia de tostões ou alguns mil réis, estão livros de Fernando Pessoa, Camilo Castelo Branco ou Fiodor Dostoievski. A Alêtheia, editora de Zita Seabra, assentou arrais numa antiga padaria do Bairro Alto, mas decidiu manter muitos dos aspectos originais. A ideia não é nova e como explica uma das administradoras da Alêtheia, Alexandra Louro,"faz parte do espírito do Bairro".
A reconversão do espaço foi, segundo Alexandra Louro, "um sucesso”.
A "nova cara" que a Alêtheia deu à padaria oitocentista é uma mudança que acompanha a estratégia da editora em época de crise. "Temos de nos reinventar em tempo de crise, e se editamos livros, porque não vendê-los?", questiona Alexandra Louro.
Não fossem os livros estar em todo o lado e qualquer visitante podia andar à procura do pão, pois até os cheiros a novo e a livro se assemelham ao odor do pão acabado de fazer. A decoração está assim em consonância com a diferença que a Alêtheia quer marcar."Este é um espaço alternativo às outras livrarias que são inundadas de novidades. Aqui não vão encontrar Paulo Coelho", garante.
A livraria está dividida por salas e cada um destes espaços tem uma pequena curiosidade. Numa delas, um velho forno e a mais antiga máquina de mistura de cereais da capital (que "já quiseram tirar daqui para levar para um museu"), coabitam com António Lobo Antunes e José Eduardo Agualusa.
E se nos bastidores Zita Seabra tem um calmo escritório, onde se faz acompanhar por um excerto da Divina Comédia de Dante embutido na parede, numa outra sala da livraria a sua obra Foi assim faz-se acompanhar de livros de Mao, Fidel ou Estaline. Não é coincidência: nesse espaço, há uma porta que não dá para lado algum. A fuga tem de ser feita pelos livros ou seguindo o chão de cerâmica oitocentista, idêntico ao do Grémio Literário...
Bonés na arca refrigeradora
A Alêtheia é o exemplo mais recente de reabilitação do espaço, mantendo parte da sua decoração inicial, mas não é único no Bairro Alto. Seguindo a"tradição"apesar de mudarem de ramo, vários comerciantes vão deixando nos espaços as características de outrora. Foi o que aconteceu na Rua do Norte com uma antiga mercearia que agora é uma loja de acessórios.
Da antiga mercearia sobrevive uma arca frigorífica, onde agora estão expostos vários bonés coloridos. Tiago Martins, que ali trabalha, não tem dúvidas que esta opção estética foi tomada "para fazer algo kitsh e para manter o espírito do Bairro". Aquele espaço também já foi um talho e, por isso, no tecto estão malas presas por ganchos "tal como os nacos de carne", explica o funcionário. No fundo da loja, o letreiro luminoso que invoca "Fresh Meat" é mais um dos elementos que denuncia que o passado não só foi mantido como também foi adaptado como conceito, pois toda a loja se assemelha a uma mercearia/talho.
Além de seguir o tantas vezes referido"espírito do Bairro", o grande motivo para deixar vestígios antigos é o marketing. Os velhos portões da entrada e as desgastadas ombreiras das portas da loja da Eastpak, num dos extremos da rua do Norte, são os resquícios de uma velha carpintaria. O ar envelhecido é marketing para atrair visitantes. O lojista Ricardo Martins explica que a loja "já esteve toda limpinha, mas voltou ao aspecto degrado para seguir o conceito da marca built to resist , em que os produtos são construídos para resistirem mais tempo que os próprios edifícios. As paredes negras e desgastadas da antiga carpintaria fazem sobressair o aspecto das coloridas mochilas e Ricardo Martins observa que esta estética "resulta e atrai bastantes pessoas ao espaço".
Alfredo Oliveira, talhante que viu o Bairro Alto mudar nos últimos 60 anos (ver caixa), lembra quando frequentava uma "casa de meninas, conhecida como quartel-general , porque iam lá todos os tropas e os marinheiros". Nesse tempo, o Bairro tinha má fama ("e proveito") e era associado à prostituição. São estes rótulos negativos que hoje se apagam, ao mesmo tempo que procura manter alguma da sua genuinidade. Há objectos que sobrevivem em espaços diferentes e o Bairro continua vivo.
O "ESPIRITO" DE MUDANÇA
Até quem não muda vê a capacidade de transformação das lojas do Bairro Alto. Alfredo Oliveira, 73 anos, trabalha num pequeno talho da Rua do Diário de Notícias há 43 anos. Sem alterações.
Recorda o tempo em que “os ardinas andavam a vender jornais e as varinas a carregar peixe”, pára, olha à volta e dispara com ar nostálgico:”Agora que estou a ver bem, isto aqui mudou 100%.” Sem fazer qualquer pausa, Alfredo debita as alterações nos espaços que a sua visão alcança:”Ali o bar Palpita-me era uma fábrica de pirolitos; o restaurante El Gordo era a Taberna do Eugénio; o Cocheira Alentejana era uma mercearia; aquela loja de discos era um depósito de pão; a Galeria 59 era uma tipografia, ali a Tasca do Chico era um armazém de queijos.”- RPA
In Diário de Notícias
Segunda-feira, 13 de Abril de 2009
Recorda o tempo em que “os ardinas andavam a vender jornais e as varinas a carregar peixe”, pára, olha à volta e dispara com ar nostálgico:”Agora que estou a ver bem, isto aqui mudou 100%.” Sem fazer qualquer pausa, Alfredo debita as alterações nos espaços que a sua visão alcança:”Ali o bar Palpita-me era uma fábrica de pirolitos; o restaurante El Gordo era a Taberna do Eugénio; o Cocheira Alentejana era uma mercearia; aquela loja de discos era um depósito de pão; a Galeria 59 era uma tipografia, ali a Tasca do Chico era um armazém de queijos.”- RPA
In Diário de Notícias
Segunda-feira, 13 de Abril de 2009