15 abril 2009

VELHAS LOJAS NOVOS USOS


Velhas lojas com novos usos no Bairro


Lisboa. A livraria Alêtheia abriu há menos de um mês no espaço de uma antiga padaria. No Bairro Alto são várias as lojas que mantêm elementos que atravessam gerações. O DN foi conhecer algumas.

RUI PEDRO ANTUNES

Os azulejos brancos, os armários típicos e o balcão de lioz não deixam dúvidas: no número 13 da Rua do Século já se vendeu pão porém, hoje em vez de papos-secos vendidos por meia dúzia de tostões ou alguns mil réis, estão livros de Fernando Pessoa, Camilo Castelo Branco ou Fiodor Dostoievski. A Alêtheia, editora de Zita Seabra, assentou arrais numa antiga padaria do Bairro Alto, mas decidiu manter muitos dos aspectos originais. A ideia não é nova e como explica uma das administradoras da Alêtheia, Alexandra Louro,"faz parte do espírito do Bairro".
A reconversão do espaço foi, segundo Alexandra Louro, "um sucesso”.

A "nova cara" que a Alêtheia deu à padaria oitocentista é uma mudança que acompanha a estra­tégia da editora em época de crise. "Temos de nos reinventar em tem­po de crise, e se editamos livros, porque não vendê-los?", questiona Alexandra Louro.
Não fossem os livros estar em todo o lado e qualquer visitante po­dia andar à procura do pão, pois até os cheiros a novo e a livro se as­semelham ao odor do pão acabado de fazer. A decoração está assim em consonância com a diferença que a Alêtheia quer marcar."Este é um espaço alternativo às outras li­vrarias que são inundadas de no­vidades. Aqui não vão encontrar Paulo Coelho", garante.
A livraria está dividida por salas e cada um destes espaços tem uma pequena curiosidade. Numa delas, um velho forno e a mais antiga máquina de mistu­ra de cereais da capital (que "já quiseram tirar da­qui para levar para um museu"), coabitam com António Lobo Antunes e José Eduardo Agualusa.
E se nos bastidores Zita Seabra tem um calmo es­critório, onde se faz acom­panhar por um excerto da Divina Comédia de Dante embutido na parede, numa outra sala da livraria a sua obra Foi assim faz-se acompanhar de livros de Mao, Fidel ou Estaline. Não é coincidência: nesse es­paço, há uma porta que não dá para lado algum. A fuga tem de ser feita pelos livros ou seguindo o chão de cerâmica oitocentista, idêntico ao do Grémio Li­terário...

Bonés na arca refrigeradora

A Alêtheia é o exemplo mais recen­te de reabilitação do espaço, man­tendo parte da sua decoração ini­cial, mas não é único no Bairro Al­to. Seguindo a"tradição"apesar de mudarem de ramo, vários comer­ciantes vão deixando nos espaços as características de outrora. Foi o que aconteceu na Rua do Norte com uma antiga mercearia que agora é uma loja de acessórios.
Da antiga mercearia sobrevive uma arca frigorífica, onde agora es­tão expostos vários bonés colori­dos. Tiago Martins, que ali trabalha, não tem dúvidas que esta opção estética foi tomada "para fazer algo kitsh e para manter o espírito do Bairro". Aquele espaço também já foi um talho e, por isso, no tecto es­tão malas presas por ganchos "tal como os nacos de carne", explica o funcionário. No fundo da loja, o le­treiro luminoso que invoca "Fresh Meat" é mais um dos elementos que denuncia que o passado não só foi mantido como também foi adaptado como conceito, pois toda a loja se assemelha a uma mercea­ria/talho.
Além de seguir o tantas vezes referido"espírito do Bairro", o gran­de motivo para deixar vestígios an­tigos é o marketing. Os velhos por­tões da entrada e as desgastadas ombreiras das portas da loja da Eastpak, num dos extremos da rua do Norte, são os resquícios de uma velha carpintaria. O ar envelhecido é marketing para atrair visitantes. O lojista Ricardo Martins explica que a loja "já esteve toda limpinha, mas voltou ao aspecto degrado pa­ra seguir o conceito da marca ­built to resist , em que os produtos são construídos para resistirem mais tempo que os próprios edifícios. As paredes negras e desgas­tadas da antiga carpintaria fazem sobressair o aspecto das coloridas mochilas e Ricardo Martins obser­va que esta estética "resulta e atrai bastantes pessoas ao espaço".

Alfredo Oliveira, talhante que viu o Bairro Alto mudar nos últimos 60 anos (ver caixa), lembra quando frequentava uma "casa de meni­nas, conhecida como quartel-general , porque iam lá todos os tropas e os marinheiros". Nesse tem­po, o Bairro tinha má fama ("e proveito") e era associado à prostituição. São estes rótulos negativos que hoje se apagam, ao mesmo tempo que procura manter alguma da sua genuinidade. Há objectos que sobrevivem em espaços dife­rentes e o Bairro continua vivo.


O "ESPIRITO" DE MUDANÇA



Até quem não muda vê a capacidade de transformação das lojas do Bairro Alto. Alfredo Oliveira, 73 anos, trabalha num pequeno talho da Rua do Diário de Notícias há 43 anos. Sem alterações.
Recorda o tempo em que “os ardinas andavam a vender jornais e as varinas a carregar peixe”, pára, olha à volta e dispara com ar nostálgico:”Agora que estou a ver bem, isto aqui mudou 100%.” Sem fazer qualquer pausa, Alfredo debita as alterações nos espaços que a sua visão alcança:”Ali o bar Palpita-me era uma fábrica de pirolitos; o restaurante El Gordo era a Taberna do Eugénio; o Cocheira Alentejana era uma mercearia; aquela loja de discos era um depósito de pão; a Galeria 59 era uma tipografia, ali a Tasca do Chico era um armazém de queijos.”- RPA

In Diário de Notícias
Segunda-feira, 13 de Abril de 2009