03 dezembro 2007

FARTAR A MEMÓRIA

Por Francisco José Viegas

Parece uma manhã tranquila e é. Mas, ao meio-dia e meio, se não fosse estarem abertas as portas de muitas lojas e de muitos restaurantes, dir-se-ia que era manhã bem cedo. 0 Bairro Alto já não tem “o bulício de outrora”, pelo menos a esta hora. Para mim é Inverno, digam o que disserem: sinto o primeiro frio do ano, verdadeiramente, quando subo do Cais do Sodré para o Largo de Camões e, daí, procuro a Rua das Gáveas e, depois, a Rua do Norte. Os adolescentes da noite anterior deixaram o bairro de madrugada, entregue a depredação, mas há lugares castiços que resistem.

Pepe Carvalho, o de Vázquez Montalbán, sentiria isso na sua Barcelona, percorrendo as velhas ruas dos mercados e todo o Bairro Gótico — mas aqui não vejo grande sinal de limpeza. Lisboa continua relativamente suja e a pergunta faz sentido: Lisboa está suja porque não a limpam ou porque os lisboetas a sujam? Ao contrário de Carvalho, não tenho a nostalgia dos velhos bairros, nem dos velhos vícios, nem dos velhos cheiros, nem das coisas que terminam. Terminam e pronto, chegam ao fim. Velhas tabernas são substituídas por restaurantes chinfrins ou por bons restaurantes, oficinas de reparação de móveis são tomadas por lojas de roupa em segunda mão, por lojas de discos, por ‘lounges’ (tudo é ‘lounge’, desde a música à sala de estar e aos bares minimais), mas não se me aguça a nostalgia. Há, simplesmente, coisas que acabam. Procuro as que sobrevivem, como um pesquisador que vem à velha cidade com as memórias dos outros. Por exemplo, a de José Saramago – que neste restaurante negociou com Fernando Meirelles o essencial do filme ‘Ensaio sobre a Cegueira’, enquanto comiam bacalhau à Braz e bacalhau no forno com pimento e azeitonas. E a de José Cardoso Pires, que neste restaurante apreciava as “costeletas de sardinha”; tempos antes de morrer, numa noite de felicidade, esteve aqui o mágico criador de ‘0 Delfirn’ e de ‘Alexandra Alpha’, até depois das quatro da manhã, festejando a vida que iria marcar-lhe um termo de identidade e residência. Enquanto escolho os pratos, mostram-me (com um gesto de grande ternura por José Cardoso Pires) o autógrafo do escritor, a sua letra e o desenho que gostava de praticar. Recordo um jantar tardio com ele: os vinhos, a inteligência, a malandrice, o desprezo pela literatice, o prazer das coisas substantivas, essenciais, humaníssimas. A sala é pequena mas acolhedora, e o Farta-Brutos colecciona, nas suas paredes, memórias dos seus amigos. É a sua família. A do Tavares Pobre. Honremo-la. É a sua família.


Gosto de restaurantes que têm a sua família, os clientes que reservam a sua garrafa, que são informados sobre a ementa do dia seguinte, que tratam o Sr. Ramiro por Ramiro e que deixam o jornal sobre a mesa quando se vão embora. Primeiro, vem um queijo gratinado no forno; há ali um excesso de ervas, e eu ganhei um cansaço pelos orégãos – mas a proposta é generosa, e o pão é saboroso. Pataniscas de bacalhau com arroz de feijão, filetes de polvo, arroz de pato, um cabrito no forno, rojões, arroz de marisco, iscas e cabidela, coelho frito com açorda. Vamos nisso, como nos fadinhos de Hermínia: vamos nisso. Primeiro, as costeletas de sardinha, em homenagem a José Cardoso Pires: os filetes foram temperados com limão, panados suavemente, fritos no ponto – e acompanhados de arroz de tomate, que está bom e não é, como hoje em dia, ou devorado pela massa de polpa de tomate, ou pontilhado de pedaços de tomate que não quis desintegrar-se. Não: é um bom arroz de tomate, feito com tomate, para ser comido às garfadinhas. Segue-se, na ordem de chegada, um prato excêntrico: coelho frito. Bem frito e bem temperado, e bem cortado, enlaçado com a travessinha de açorda, que vai bem e merece aplauso. Hoje em dia, há uma crise nos acompanhamentos, com arroz de grelos sem grelos, açorda que passa por ser pão embebido em água fervente, batata cozida que parece arrancada ao caldeirão, pingando. Finalmente, só por pudor não ataco os papos d’anjo, que vêm num carrinho onde há leite-creme e arroz doce, cousas fatais para o cronista. 0 café soube a café neste princípio de tarde luminoso de Inverno (é Inverno, já disse). Até o Bairro Alto melhorou quando saio e encontro a luz de Novembro.
In “Notícias de Sábado”, 1 de Dezembro de 2007

Sem comentários:

Enviar um comentário