03 março 2010

SE VIVE NUM BAIRRO HISTÓRICO, NÃO CONDUZA

Por Inês Boaventura


Não é só pela topografia do terreno ou pela evidente carência de estacionamento. É também porque nos quatro bairros da capital com trânsito condicionado, apesar das críticas de alguns moradores, reina um silêncio invejável e não falta espaço para os peões.
A separá-las há apenas uma fiada de prédios, mas para quem mora no Bairro Alto parece haver todo um mundo de distância entre a Rua da Rosa e a vizinha Rua da Atalaia. Para lá dos pouco consensuais pilaretes que condicionam o acesso ao bairro, o dia é feito de silêncios só pontualmente interrompidos pelo rodar dos carros sobre o chão empedrado e os moradores podem dar-se ao luxo, raro em Lisboa, de se espraiarem para lá dos passeios, ocupando as estradas para caminharem lado a lado ou trocarem dois dedos de conversa.

"Ah, sim, isto agora é completamente diferente", conta Francisca Tabuada, visivelmente rendida aos encantos de viver numa das quatro zonas da capital com trânsito condicionado. Moradora no Bairro Alto "há 20 e tal anos", assistiu, no fim de 2002, à introdução do sistema então pioneiro e só lhe aponta vantagens. "As ruas estão mais sossegadas e mais limpas. Antes uma pessoa quase nem podia passar porque estacionavam nos passeios e faziam dali garagem", explica, enquanto passeia despreocupadamente o cão pela trela.
"Já não imagino este bairro com trânsito. Era uma confusão", diz Hugo Offerman, que, com 29 anos, é um dos mais recentes moradores da zona. "É óptimo. Moro na Rua dos Mouros, que não tem bares nem nada, e não há ruído nenhum", descreve com satisfação, acrescentando depois que nem o estacionamento é um problema porque a centralidade do bairro lhe permite viver sem automóvel.

A meio da manhã de um dia de semana, os lugares disponíveis são mais do que muitos e nas ruas e travessas da zona condicionada reina uma tranquilidade invejável, aqui e ali entrecortada pela música ou pelo barulho de um berbequim que viaja para lá de uma janela entreaberta. Turistas e moradores não hesitam em ocupar a estrada para andar ou para trocar confidências, alheios às buzinadelas e aos veículos que descem em pára-arranca a Rua de São Pedro de Alcântara, uma artéria vizinha onde a circulação se faz sem qualquer limitação.
Mas no Bairro Alto, tal como na Bica, no Castelo e em Alfama, também há moradores descontentes com o sistema e particularmente com a gestão feita pela Empresa Municipal de Estacionamento de Lisboa (EMEL). E no que a tal diz respeito, faz mais sentido do que nunca o velho provérbio "preso por ter cão, preso por não ter", já que são tantos os moradores a queixar-se das dificuldades criadas para familiares e amigos entrarem nas zonas condicionadas como aqueles que criticam o excesso de carros devido à permissividade dos funcionários daquela empresa.
"A minha família quer cá entrar e não pode. São filhos do bairro, nasceram cá", conta, com uma revolta evidente, a septuagenária Maria Palmira Lopes, que reside no Bairro Alto "desde os oito dias de nascença" e acha as limitações impostas à entrada de veículos "uma pouca-vergonha". "Estou farta deste bairro até aos olhos", desabafa, confessando que o seu maior problema são os bares até altas horas de noite, que a impedem de "sossegar a cabecinha" .

"Isto não foi nada bom para nada. As pessoas antes vinham para aqui descansadas e agora isto ficou isolado de tudo", critica por sua vez Maria Aurora, que vive e trabalha em Alfama, num restaurante mesmo em cima de uma das entradas na zona condicionada, na Calçada de São Vicente. "É todos os dias uma discussão pegada a falar para aquela máquina. Às vezes ficam filas imensas e depois vem o eléctrico que não consegue passar", descreve, lembrando que, por desconhecimento ou distracção, "duas ou três vezes por semana" há quem avance com o seu veículo contra o pilarete.
No coração do bairro, junto ao decadente Centro Cultural Dr. Magalhães Lima, quatro moradoras trocam sem qualquer pudor (ou contenção no volume) mexericos e não hesitam em usar o mesmo tom crítico quando o assunto é a EMEL. "Isto são uns gatunos autorizados. A minha filha já nem entra aqui. Pára o carro lá fora e deixa-me os miúdos, como se fossem carneiros", diz Maria Fernanda, crente de que o condicionamento de trânsito vai acabar por levar ao "abandono" de Alfama. "Só quem é maluco é que vem para aqui", remata, furiosa.

(in «Público)