Al Berto
Os Jardins do Paraíso
De vez em quando, Lisboa tem crepúsculos misteriosos. Uma luminosidade fulva envolve a cidade, veste-a, e ela desata a arder. Depois, a fina bruma esconde o Tejo, a ponte, os fumos negros da outra margem. A cidade desaparece, aos poucos, sob um lençol de branca humidade. Faz hoje um ano, precisamente, que ela desapareceu. A noite caía, como hoje, lenta e húmida. Lembro-me de tudo como se fosse neste preciso instante...
Vinha do sul, e quando cheguei à ponte fui obrigado a seguir o ritmo enervante do engarrafamento. Ao fim de hora e meia consegui entrar na cidade, cansado e com os nervos esticados a ponto de rebentarem.
A noite pairava, suspensa, sobre o casario. Lisboa – enquadrada pelo pára-brisas assemelhava-se a um cenário de filme. Cobria-a uma luz enevoada, e assim que a noite a engoliu por completo, iluminou-se.
Mas apesar de iluminada, quase profusamente, parecia uma cidade deserta.
Era tarde e tinha fome quando cheguei, por fim, a casa. Fiz dois ou três telefonemas e decidi ir comer qualquer coisa ao Bairro Alto, ao Fidalgo. Precisava de descomprimir e ali, no Fidalgo, tinha quase a certeza de encontrar alguém conhecido.
Não estava ninguém. Jantei sozinho.
Depois do jantar andei de um lado para o outro, sem saber muito bem onde ir. O bairro, à sexta-feira, transforma-se num frenesim de gente. Acabei por ir espreitando em tudo o que era bar, até que aterrei desesperado, e meio bêbado, no Frágil.
Atravessei a multidão de estafetas-de-fim-de-semana e os basbaques que se encostam às paredes durante horas, saltitei por entre os corpos que dançavam a alta velocidade, acenei ao Zé Pedro e ao Diniz, e fui despejado com um empurrão contra o bar.
Respirei fundo, levantei a mão e fiz sinal ao Carlos que, de imediato, me trouxe uma cerveja.
Encostei-me ao bar, olhando à minha volta, e acabei por descobrir a mulher que, a meu lado, me olhava – e me parecia ser a pessoa que procurara a noite toda.
Olhou-me de soslaio e depois frontalmente. Esboçou um sorriso, virou-se para o bar, pegou no copo e bebeu o vodka-laranja de um trago.
Depois, virou-se para mim e disse com brusquidão:
- Pareces-te bastante com o Mário. - Mário? Não me chamo Mário. Qual Mário? - respondi-lhe.
Sem dar atenção à minha pergunta, ela começou a falar do Mário. A sua voz rouca arrastava-se a cada palavra.
- Mário – começou ela a dizer, interrompendo-se de quando em quando para beber – chegou sei lá de onde e ficou uma semana em Lisboa. E desapareceu... depois, desapareceu... até hoje. Apaixonámo-nos, uma paixão repentina, não nos largámos mais. Até a cidade mudou durante essa semana. Mas quando se foi embora, tudo o que me rodeava começou a morrer... e alguns dias mais tarde comecei a receber, com regularidade, bilhetes postais; chegavam dos lugares mais longínquos. Mário escrevera em todos os postais a mesmíssima coisa:
"Encontrei isto num livro: os rios arrastam com eles a imagem das cidades que atravessam. Amo-te, Mário."
"Então, comecei a andar por aí, à procura dele nos outros homens. A ausência de Mário corroía-me. E quando encontrava qualquer coisa de Mário noutro homem – um gesto, um olhar, uma peça de vestuário, qualquer coisa ínfima... – ficava louca, sentia-me enlouquecer, percebes?, tinha vontade de os matar e... em abono da verdade foi o que acabei por fazer...
Calou-se repentinamente. Bebeu com sofreguidão e olhou-me.
Não disse nada, sentia-me paralisado, confuso; era-me difícil imaginá-la a matar fosse quem fosse. O seu rosto revelava doçura, os olhos eram de um negro profundo, inquietos...
Aproveitei aquele silêncio para mudar de assunto, perguntei-lhe à queima-roupa onde ia quando saísse dali.
Olhou-me fixamente, encolheu os ombros e balbuciou:
- Não tenho a mínima ideia. Talvez para casa, estou cansada... talvez não... hoje...
Saímos dali e descemos a Travessa da Queimada. Acompanhei-a até ao táxi. Perguntei-lhe se podíamos jantar no dia seguinte.
Sorriu, agarrou-me no braço, fazendo-me parar, e beijou-me. Ao largar-me, recuou um passo e entrou apressadamente no táxi. Vi-a dizer a morada ao taxista. Em seguida abriu a janela e sussurrou:
- Às oito e meia, no Último Tango.
Especado no passeio, fiquei a ver o táxi afastar-se em direcção à Rua do Alecrim.
Não estava muito longe de casa. Resolvi ir a pé, precisava de apanhar ar. E enquanto subia a Rua de S. Pedro de Alcântara, veio-me à cabeça o que ela me contara. Ouvia a sua voz como um murmúrio, como se ela estivesse ali, atrás de mim: - Não sei se sabes, mas as grandes paixões são sempre repentinas. Sobretudo se se trata de um desconhecido que se atravessa no caminho. Mário atravessou o meu, e eu o dele. Quando isto acontece, estás a entender?, o tempo pára, suspende-se, ou deixa de existir. Talvez seja por isso que a paixão se constrói à mesma velocidade fulminante com que se arruina. A cidade viu-nos e acolheu-nos. Vagabundeámos noite e dia, até à exaustão. Amámo-nos por aí... em hotéis baratos, e quando dormíamos o rio atravessava o nosso sonho. Mas quando o contemplávamos horas a fio, ao fim da tarde, sabíamos que um dia, um dia muito próximo, nos perderíamos um do outro. E uma manhã... quando acordei, Mário já ali não estava. A cama vazia era como se o rio tivesse parado de correr. De repente... a vida parou... a minha vida parou...
Meti a chave à porta. Cambaleei corredor fora, até ao quarto. Atirei-me, vestido, para cima da cama e não consegui dormir. Fechei os olhos e via-a. Via-a caminhando pela noite ácida da cidade, em direcção ao rio, procurando Mário. Falava sozinha, mas não consegui perceber o que dizia.
Mesmo antes de adormecer, lembro-me, vi a sua silhueta imobilizada, em contraluz, junto à água negra do Cais das Colunas.
No dia seguinte levantei-me tardíssimo, e ressacado. Meti-me na banheira, uma caneca de café na mão, e pus-me a acender os cigarros uns nos outros.
Esperei a hora do jantar numa inquietação sem medida. Não conseguia estar quieto, nem ler, nem concentrar-me no que quer que fosse. Passei duas horas a andar de cá para lá, a desgastar a alcatifa, sem proveito algum. Sentia-me uma fera enjaulada cujo tratador se esqueceu de alimentar.
Por volta das oito saí para a rua e apanhei um táxi. Na Brasileira dei uma vista de olhos pelos títulos dos jornais, comprei cigarros, e dirigi-me para o restaurante.
Quando entrei no Último Tango, vi-a de imediato. Estava vestida de negro, sentada numa posição um pouco hirta, e bebia aos golinhos um martini rosso.
Levantou a cabeça, atirando os cabelos para trás dos ombros, e olhou-me:
- Olá Mário!
- Já te disse que não sou Mário.
- Nenhum importância – respondeu ela, enquanto pegava no menu e o abria, lendo-o em voz alta.
Estava sentado à sua frente, sem saber o que dizer. Ouvi-a encomendar um arroz de tamboril e um vinho branco de que já não me lembro a marca...
Depois, virando-se para mim, aproximou os lábios dos meus, e recomeçou a falar, muito baixinho:
- Viste as notícias nos jornais? Ainda não descobriram se o rapaz encontrado morto no Jardim da Estrela, a semana passada, se envenenou ou foi envenenado... um mistério, não achas? A cidade tem destas coisas, assim misteriosas...
Lentamente afastou-se de mim, voltando à posição um pouco hirta, de copo na mão, atirando os cabelos para trás com um movimento breve da cabeça.
Eu tinha, de facto, sido atraído para aquele título, ao qual se seguia uma fotografia do morto, sentado num banco de jardim, como se estivesse a dormitar.
Ela sorriu, ficou em silêncio um momento antes de prosseguir:
- Tenho a certeza de que foi envenenado. E o outro, o que encontraram há quinze dias, junto ao Cais das Colunas, também.
Olhei-a receoso.
Vi-a levantar o copo e bebericar o vinho. Depois, pousou o copo, e ficou absorta, o olhar perdido algures atrás de mim.
Lá fora chuviscava, a noite caía sem pressa.
Suspirou. Os nossos olhares encontraram-se de novo, no instante em que ela retomou o monólogo. Escutei-a atentamente, sem articular um som, e sem acreditar numa só palavra do que me contava.
- Quando o Mário se sumiu, andei por aí, como um barco à deriva, procurando-o avidamente. O pior é que eu sabia que ele desaparecera para sempre, sem rastro. Nestas deambulações pela cidade acabei por encontrar o Jorge. Andei com ele alguns dias. Fazíamos os mesmos percursos que eu fizera com o Mário. Até que, uma noite, antes que o Jorge também fugisse, decidi liquidá-lo. Isso mesmo, liquidá-lo. Fomos jantar e depois andámos a beber até de manhã. De madrugada, na Suíça, enfiei-lhe o veneno no café; enquanto ele comprava cigarros. Em seguida fomos até ao Cais das Colunas e eu esperei que o veneno fizesse efeito. O Jorge começou a ter vertigens. Sentámo-nos perto da água e ele, coitado do Jorge!, pensou que era excesso de álcool... estendeu-se nas lajes húmidas e morreu. Fui-me embora sem olhar para trás.
"Duma outra vez, encontrei o Mário no olhar de Manuel. E, um dia, olhei-o a dormir, durante a noite toda. O problema é que o Manuel, com os olhos fechados, nu... não tinha nada que se parecesse com o Mário. Eram os seus olhos, a sua maneira de olhar, que me recordavam Mário. Quando o Manuel dormia, o Mário deixava de existir para mim. Senti que tinha de o fazer desaparecer rapidamente. E não consegui esperar que acordasse. Era quase manhã, o dia apenas despontava. Levantei-me, fiz café e acordei-o, dizendo-lhe que me apetecia passear no Jardim da Estrela, que estava uma manhã linda, que... e lá fomos, falando disto e daquilo. O sol começava a aquecer. O jardim ainda estava deserto àquela hora. O Manuel começou a ter náuseas. O veneno, diluído no café, agia.
"Abandonei-o no banco onde o encontraram. É uma chatice ter de os matar, percebes?... só para manter viva esta paixão por Mário...
Subitamente desatou às gargalhadas.
Eu continuei a tentar comer, calmamente, sem dar grande importância ao que ela me revelava, mas ao fim de alguns minutos senti-me desfalecer. Levantei-me e corri para a casa de banho. Fechei-me lá dentro. Encostei-me à parede e pensei: "Está visto, seu cretino, que és o próximo a lerpar."
Um arrepio percorreu-me a espinha, comecei a transpirar. Mijei. Respirei fundo, molhei a cara e o pescoço com água fria. Recompunha-me como podia, e quando saí dali continuava a não saber o que fazer.
Sentei-me, o mais calmo que pude. Ela encheu-me o copo até ao rebordo. Não lhe toquei.
- Quero que vejas os bilhetes postais que o Mário me escreveu. Tenho-os aqui – disse ela, pousando com delicadeza a garrafa; e abrindo o saco, tirou dele um molho de postais que espalhou à minha frente.
Observei-os. Todos tinham escrito exactamente a mesma coisa:
"Encontrei isto num livro: os rios arrastam com eles a imagem das cidades que atravessam. Amo-te, Mário."
Acabámos de jantar em silêncio.
Lá fora começara a chuviscar, lembro-me. As ruas enchiam-se de gente que entrava e saía dos bares e restaurantes.
De repente ocorreu-me que não sabia o nome dela e que, na verdade, me esquecera de lho perguntar.
Agarrei na garrafa e enchi-lhe o copo, exactamente como ela fizera com o meu.
Por fim, enchendo-me de coragem, e pensando para comigo mesmo que nada daquela conversa tinha pés e cabeça, e que tudo aquilo não passava de um jogo de sedução -, pequei no copo e perguntei-lhe com a maior naturalidade de que era capaz:
- Ao menos, diz-me como te chamas... e vamos beber. Se o teu nome não for um segredo, claro...
E aproximei o copo da boca, e mal o fiz, senti-o voar-me da mão com o safanão que ela acabara de dar-me. Estupefacto, petrificado, ouvi-a murmurar:
- Isabel... Isabel...
Ao mesmo tempo que se levantava e corria para a porta.
Alguns dias mais tarde, não sei bem quantos, comecei a receber os bilhetes postais que Mário lhe enviara. Chegavam, um a um, num envelope, de lugares longínquos. Isabel assinara por baixo da assinatura de Mário – era tudo.
Guardei-os, ainda os tenho aqui, diante de mim.
Hoje, passado um ano, assim que a noite cair e as ruas se encherem de gente, vou sair e perder-me... à procura de quem? De Isabel?
Al Berto, "Os Jardins do Paraíso", Lisboa: Curta-Metragem,
"VER", Verão 1994, No 72, pp. 122-125
Qual o interesse para o blog das ultimas publicações,incluindo esta?É para parecer que o mesmo é muito activo e dar um ar cultural?Pois parece,ou é para deitar poeira para os olhos,pois agora que a ACBA conseguiu que os restaurantes encerrem ás duas,nada mais fez que se visse para ajudar a luta dos bares e combater o Antonio costa e a sua e de seus acólitos decisão ridicula de encerrar o bairro!
ResponderEliminarHá Paizinho saloio governado por politicos saloios sem visão e tacanhos,conservadores do pau ôco!
Medo do Antnio costa?Então e a providência cautelar?Os tiranos tem de ser combatidos de cabeça erguida e com esta falta de união não chegamos a lado nenhum!
Gostaria de ver esta decisão ser tomada assim no Pais Basco,ai como eu gostaria!
Estes politicos são uns sortudos por viverem em Portugal por ainda sermos um povo de brandos costumes,mas olhem que isso está a acabar e de brandos os costumes nada tem actualmente!
Este conto prova que o comércio do Bairro Alto faz parte da História da cidade. Pelo contrário o aparelho político do PS (Alvarez e Cª) não só está do lado errado da História como nem sequer farão parte dela. O tempo falará. Mesmo sem avaliação os políticos medíocres serão chumbados!
ResponderEliminarO que eu acho graça é que até o Algarve promove a Festa Fim de Ano, como é normal, em qualquer parte do mundo, e aqui no Bairro a malta está de castigo e tem de se deitar cedo que grande socialista esta junta e esta câmara, vamos mas é ficar todos abertos e eles a seguir que nos venham multar, e vamos todos a tribunal a ver se algum juiz nos condena onde é que está a lei da concorrência??? e nos próximos santos populares vamos outra vez pedir ao Sr. Alvarez para nos dar mais uma horinha?
ResponderEliminarComerciante e Morador com mais de 35 anos de BA não assino porque tenho medo destes socialistas que me podem vir a fazer a vida negra.
Já só falta eles virem dizer que também contribuíram para o abaixamento das taxas de juro.
EU fiquei de luzes acesas até ás 04 h da manhã e estive com público até ás 05h da manha..Multa,nao nao levei nehuma e se levasse os tribunais existem para quê?..Nem q necessário fosse levar esta CML ao tribunal dos direitos do homem..O problema no Bairrro é a falta de união!
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