Por Cláudia Sobral
Gastar muito podendo gastar pouco? Os bares podem queixar-se, mas, enquanto puderem, estes jovens continuarão a sair de garrafa na mão.
Noite de sexta-feira, o Largo de Camões fervilha de gente. Cheira a cerveja, vinho, os pés colam-se ao chão pegajoso dos degraus que contornam a estátua de Luís de Camões. Álcool entornado. Quem chega vai-se sentando, em grupos, neste largo onde os jovens se juntam à noite para beber de garrafas que compram em supermercados ou lojas de conveniência. Sai mais barato. É o botellón português.
Vão chegando mais amigos. Depois - quando já todos os lugares estão preenchidos - começa a haver gente sentada às portas dos prédios que dão forma ao largo. E garrafas, muitas garrafas, sobretudo "litrosas" (cervejas de litro). "Litrosas" à volta da praça, dos bancos, da estátua. "Litrosas" nas mãos do mundo e em sacos de plástico. Para dividir entre amigos ou individuais.
Nikola Nikolov, crista preta, botas tipo Doc Martens, está com um grupo de punks que habitualmente se encontra por aqui. Costumam fazer malabarismo com fogo, mas hoje fazem a seco. Ainda é cedo, 22h45. "Veio falar com a pessoa certa", diz num português quase perfeito (tem 27 anos, vive em Portugal há dez). "Eu sou mais adepto do tinto, mas há quem seja da cerveja. Sinceramente, se tivesse "guito" até gostava de experimentar uns cocktails."
Não há dados sobre a dimensão do fenómeno do botellón (garrafa grande, em espanhol) em Portugal, mas João Goulão, presidente do Instituto da Droga e da Toxicodependência (IDT), diz que é uma tendência que se tem notado. "Vemosque há recurso, com muita frequência, à compra de bebidas nos supermercados e nas lojas para consumo na periferia dos locais de diversão." A justificação é a mesma que dão os adeptos desta prática que os jovens portugueses parecem estar a importar de Espanha: o dinheiro. O botellón ganhou força em Espanha no início da década de 90, mas acabou por assumir proporções tais que, há cerca de dez anos, levou à tomada de medidas de controlo por parte das autoridades locais.
Avançando-se pela Rua do Loreto vai-se logo dar aos bares do Bairro Alto. Uma cabeça ruiva grita, do meio da confusão: "Vamos ao Celta!" E avançam. Ela leva a garrafa, os amigos levam cada um o seu copo, que não é por se pagar pouco que tem de se beber do gargalo.
Bares contra as garrafas
Bar, restaurante, bar, loja de conveniência, outro bar. É isto o Bairro Alto à noite. Numa das ruinhas apertadas, uma destas lojas exibe os seus atributos num painel laranja, à entrada: "Mini ?0,80, imperial ?1, litrosa ?2." Três amigas com pouco mais de 20 anos vão bebendo, sentadas à porta de um prédio. "É bastante mais barato e a cerveja é a mesma", diz Madalena Braga (nome fictício). De repente chegam mais amigos da Faculdade de Letras. Uma amiga oferece-lhes uma bebida numa garrafa de alumíno da moda. O que era? " Uma mistura de vodka." Também há quem leve para a rua bebidas de casa. Madalena e as amigas sabem que os proprietários dos bares gostam pouco, mas isso não é problema delas, que estão na rua.
Quem compra em lojas de conveniência já conhece as que têm os melhores preços. Francisco Silvério, para quem o botellón é uma rotina de fim-de-semana desde que começou a sair, explica que as lojas dos indianos - normalmente abertas até tarde - conseguem preços de "litrosa" mais competitivos do que o próprio Pingo Doce, algo que lhes parece incompreensível. Esta noite bebem cerveja. Em "dias especiais" poderão comprar whisky ou vodka.
Beber antes da discoteca
Preocupada com as proporções que o botellón possa vir a atingir, a Associação de Comerciantes do Bairro Alto lançou, no Verão, a campanha Garrafas na Rua Não, Abaixo o Botelhão, contra a venda de bebidas em garrafas pelas lojas de conveniência às horas em que os bares estão a funcionar.
"Isto é uma forma de concorrência desleal com os outros estabelecimentos", critica Belino Costa, presidente da associação, que fala também na falta de controlo e na venda de bebidas a menores de 16 anos. Mas muitos desses jovens dizem que também nos bares não existe esse controlo e que são os supermercados das grandes cadeias os mais preocupados com o cumprimento da lei. Meia-noite, estação de metro da Baixa-Chiado. Joga-se à bola com uma garrafa já vazia enquanto o metro que vai para o Cais do Sodré não chega. O metro é outro dos lugares em que se nota a dimensão do botellón em Lisboa. Garrafas para aqui, garrafas para ali.
Entre o Cais do Sodré e Santos, as ruas estão quase desertas, mas se há uns bancos, há gente sentada a beber. Quase sempre "litrosa", do mais barato que há. Pouco depois da meia-noite ainda há lojas geridas por indianos abertas.
Chega-se a Santos e é outro mundo. Jovens mais novos, adolescentes. O Largo do Conde- Barão é mais um "botelhódromo". Garrafas espalhadas, à volta de todos os bancos, onde não cabe mais ninguém. Meia-noite e meia. A loja de conveniência da zona vai facturando. No dia seguinte de manhã as garrafas continuarão aqui - algumas partidas. Estão por todo o lado. Quem mora nestas zonas não será tão adepto do botellón como quem bebe.
Um grupo de meia dúzia de amigas que acabou de comprar cervejas de litro e tabaco encosta-se a um canto a preparar-se para a noite, que começa aqui. "Econtramo-nos sempre por aqui, os nossos amigos vêm cá ter. Bebemos para depois sair. Não bebemos em discotecas, sai caro." As roupas e a maquilhagem não ajudam a adivinhar, mas têm por volta de 19, 20 anos. Fazem isto desde os 15. "A seguir vamos para o Urban." Não é desconfortável beber na rua? "Se estivesse ali em cima, na Botica, pagávamos mais e acabávamos por também estar cá fora", responde Rita Mendonça (nome fictício).
A Botica fica na Avenida D. Carlos I, uma zona de bares, onde raparigas tentam equilibrar pernas nuas de 14 ou 15 anos em cima de saltos altos - demasiado altos. Há bebidas alcoólicas em garrafas de água amassadas de tanto as apertarem, para que a embriaguez chegue mais rápido. Pergunta-se pelas idades e todos dizem que têm 16, 17, 18. Mas o corpo denuncia-os. Chega o táxi para ir embora: "Miúdas de 13, 14, 15 anos. Ficam em coma alcoólico, uma vez levei uma ao hospital. Outra parecia uma boneca de porcelana, sentada no passeio com uma perna para cada lado, sem se mexer."