Costumava subir o Chiado de kilt com dois dobermans pela mão e boina de golf na cabeça. Alto, e musculado, a pele brilhante de guerreiro mandinga. Sorria e cumprimentava todos, sempre com a simpatia que lhe era característico. Chamava-se José Osvaldo Barbosa, mas todos o conheciam por Zé da Guiné.
E foi ele quem, no início dos anos oitenta, teve a ideia de abrir o Souk, o primeiro bar nocturno no centro de um bairro onde a noite pertencia a marinheiros, proxenetas, fadistas e prostitutas. De seguida vieram o RockHouse, na rua Diário Notícias, e mais tarde o Jukbox, no mesmo local.
Os fadistas resistiram e até acabaram por lucrar com a nova movida que tomou conta do bairro. Cedo Zé da Guiné acabaria por conquistar os jovens noctígavos da capital, sedentos de novidades e espaços alternativos. Era artista sem cantar; nunca gravou qualquer disco e não escrevia livros nem fazia teatro. Era apenas um negro recém-chegado com estilo, pose e destemido, numa época cinzenta pós-punk, em que todos procuravam novas vias de expressão artística e pistas estéticas mais apelativas.
À sua volta passaram a girar jornalistas, publicitários, músicos, artistas plásticos, gente famosa da televisão e do cinema, novos, velhos, todos tocados por aquele carisma que poderia facilmente fazer sucesso em Londres, Paris ou Nova Iorque.
Portugal acabava de sair da longa ditadura e o pop e o rock português começavam a sair das garagens e a passar na rádio. Ansiava-se por espaços onde se pudesse comer até tarde e escutar a música jazz, enquanto se discutiam projectos e tendências novas para a capital.
Eram os tempos do vinil e da cassete, das roupas compradas na Feira da Ladra – um dos hábitos do Zé da Guiné – dos primeiros concertos dos Xutos e Pontapés, dos GNR, dos Ena Pá 2000, do Rock Rendez-Vous, e mais tarde das Longas Noites, no largo do Conde Barão, antecedendo o Baile e o B. Leza. A noite era o palco e Zé da Guiné o seu artista principal, arrastando todos na sua real companhia, irradiando energia paixão através da esbelta e humilde figura.
Da Guiné para as Longas Noites de Lisboa
Natural da Guiné-Bissau, onde nasceu em 1959, (na altura conhecido por Zé Empokta), Zé da Guiné teve uma breve passagem pela guerrilha na luta pela libertação da então colónia portuguesa. Em criança lembra-se de ver espectáculos musicais de artistas idos da então Metrópole. Depois do 25 de Abril é preso durante uma semana por ter desenhado na farda a imagem de Amílcar Cabral. Acaba por fugir de Bissau apanhando boleia aérea dos militares e colonos que regressavam a Portugal.
Em Lisboa vai morar para Campo de Ourique e conhece elementos do MRPP na cantina da Faculdade de Ciências, acabando-se por mudar para a casa de um deles. Começa a treinar karaté e chega ao grau de cinturão negro. Treina igualmente atletismo e conhece Carlos Lopes e Fernando Mamede, que lhe pedem para ir para o Sporting, onde acaba por ficar três anos. A partir de 1979, conhece várias pessoas ligadas à vida cultural lisboeta e começa a trabalhar como segurança nos concertos organizados por António Sérgio, em Cascais.
A partir de 1981 dedica-se à compra de antiguidades e obtém a nacionalidade portuguesa. Depois de uma passagem como porteiro do Browns, na Avenida e de Roma, Zé da Guiné é convidado para “fazer” o Rockhouse, no Bairro Alto, seleccionando a clientela e atraindo os inúmeros amigos famosos que, entretanto, conhecera. Começa então a revolução do bairro. Tempos depois é convidado para relações públicas do Plateau e depois para o Yes. Participa também nas Manobras de Maio, na rua do Século.
Zé da Guiné participa em vários vídeo-clips e tem ainda uma breve passagem pelo cinema em filmes como “Repórter X” e “Adeus Português”. Depois das Longas Noites, que abriu na companhia do conterrâneo Hernani Miguel, abre o bar Be Bop, em 1994, em sociedade com a namorada.
As coisas correm-lhe bem e o bar tem sucesso imediato, sendo é referência em várias revistas nacionais e estrangeiras. Zé da Guiné decide tirar uma no de férias, viajando por Londres e Paris, quando regressa descobre que o bar esteve fechado levando-o quase áà falência. As dívidas são muitas e não consegue aguentar. Entretanto, descobre que tem uma doença degenerativa do foro neurológico – esclerose.
Solidariedade
Actualmente, Zé da Guiné divide um apartamento em Chelas com uma das filhas, de quem depende na totalidade, e onde recebe a ajuda de alguns amigos. A maior parte, os amigos famosos de antigamente que gravitavam à sua volta, desapareceram. Os holofotes hoje são outros.
O homem que “inventou” o Bairro Alto, tornando-o no Soho desejado da capital portuguesa, debate-se com a doença que o agrilhoou a uma cama, ainda com muitos sonhos e projectos para realizar. Nos últimos anos, a doença imobilizou-o por completo, reduzindo a sua antiga chama a um sorriso afável que nunca perdeu e que, junto com o olhar penetrante, constituem a única forma de comunicação que lhe resta. A única arma para se ir mantendo vivo.
Os amigos decidiram divulgar uma conta-solidariedade-BES numa tentativa de minimizar as carências do seu dia-a-dia: 000700110052432001852
Joaquim Arena
http://noticias.sapo.cv/info/artigo/1102477.html