04 julho 2007

CARTA ABERTA AO FUTURO PRESIDENTE DA C.M.L


(Carta enviada aos candidatos à presidência da Camâra Municipal de Lisboa)


Excelência:

Não há roteiro de Lisboa que ignore o Bairro Alto. Em todos eles o bairro surge como um dos cartazes emblemáticos da cidade, o local que não se pode deixar de visitar. Tal importância turística a que, inegavelmente, temos de juntar uma incontestada relevância histórica, cultural e social, será, até aos olhos do cidadão mais imprudente, razão de sobra para que o Bairro seja tratado com desvelo e atenção pelo poder autárquico. Mas não é isso o que tem acontecido. O abandono, o desesperante imobilismo que tomou conta de Lisboa tem no Bairro Alto um exemplo supremo. Triste e degradante.

Suba comigo ao Bairro para uma visita breve, para um passeio esclarecedor. Poderíamos subir utilizando o elevador da Glória. Poderíamos em circunstância normais, mas a normalidade é coisa que há muito parece ter abandonado a cidade e os seus dirigentes. O elevador está parado há anos, sepultado num caixão de madeira ao cimo da colina. Dizem que não pode andar porque afectaria as obras do túnel do Rossio, as tais obras que também não andam apesar da enorme e assolapada paixão que os autarcas lisboetas dedicam a tudo quanto seja galeria subterrânea. Não anda o único túnel que é realmente necessário à cidade e não anda o ascensor da Glória. Não é imobilismo teórico é realidade palpável.

Mas quem, ainda assim, se atrever a subir a íngreme ladeira na esperança de, à chegada, poder repousar do esforço num banco do miradouro de S. Pedro de Alcantâra, sofrerá uma enorme desilusão. A “varanda do Bairro Alto” está fechada há mais de dois anos, envolta por redes de arame que, mesmo não sendo farpado, cortam o acesso e o direito de vistas.
Se já é estranho ver um eléctrico amortalhado em plena via pública mais espantoso ainda é ver um jardim prisioneiro. Pois o jardim de S. Pedro de Alcântara, mesmo sem culpa formada ou decisão de um qualquer juiz está fechado, envolto por grades a mando de um construtor civil que diz só devolver o jardim à cidade quando a cidade pagar o que lhe deve. Será isto fácil de entender? Ou estaremos nós perante uma metáfora sobre o poder dos empreiteiros na cidade de Lisboa. Ou sobre a impotência e irresponsabilidade da edilidade perante obras tão simples quanto o arranjo de um jardim?

Continuemos, vamos percorrer ruas e travessas. Entremos no bairro que, graças ao espírito renascentista de D. Manuel I, foi construído em função de regras objectivas, pelo que os interesses da cidade e da sua organização foram colocados acima dos caprichos ou interesses particulares.
Nem tudo tem piorado. Graças à restrição da circulação automóvel o caos de centenas de viaturas estacionadas sem ordem nem organização, desapareceu. Estão mais ordenados os arruamentos, mas em contrapartida as fachadas dos edifícios são o cúmulo do desleixo Já quase não resta uma parede lisa, sem rabiscos, sem desenhos, sem cartazes com as mais variadas inscrições.

Os grafites, como uma praga, tomaram conta das fachadas, subiram até ao primeiro andar e não poupam cantarias nem azulejos. É a desordem geral.
A mesma que hoje se encontra no comércio nocturno. Porque em tempos idos o autarca, na profunda ignorância do que são as dinâmicas sociais urbanas, acreditou que proibindo a abertura de novos espaços nocturnos resolveria o problema. E em vez de o resolver agravou-o. Porque na prática afastou os investidores, impediu o aparecimento de espaços legais, obedecendo a regras de qualidade, e assim requalificando o próprio bairro. E ao limitar-se a “proibir” criou as condições para o proliferar de pequenos negócios de vão de escada, uns buracos sem o mínimo de condições e até dignidade que, por alguns cêntimos, vendem a cerveja para a rua, cativando um público que tem vindo a transformar as ruas num enorme mictório público.

O escândalo é tão óbvio e tão grande, a impotência camarária é de tal forma total no que diz respeito a impedir a proliferação da ilegalidade, que a solução proposta pela última vereação, mas veemente recusada pelas juntas de freguesia, foi a instalação de mictórios móveis na via pública!

Espantoso, não?!

Enquanto os ilegais proliferam, os negócios mais antigos, com alvará e muita tradição, chegam a ser vítimas de verdadeira perseguição, tal o nível de exigências, tal a desconformidade da prepotência dos serviços que, ignorando a história e a especificidade de algumas casas, exigem encontrar em edifícios com centenas de anos as condições de qualquer construção dos nossos dias. É assim que para os clandestinos se propõe a instalação mictórios móveis na via pública enquanto os legais são obrigados a encerrar portas porque, mesmo tendo duas casas de banho para o público, lhes falta aquela que deveria servir o pessoal.

Estamos pois no domínio da caricatura. Uma enorme, uma desconforme caricatura. As esquinas vão sendo ocupadas por sacos de lixo e tábuas e caixotes e toda a espécie de desperdícios. As esquinas do lixo são apenas mais um eloquente exemplo da falta de respeito e falta de ordem que hoje impera por quase todo o bairro. As mesmas esquinas que, mal chega à noite, são ocupadas por um bando de novos “comerciantes”, uma vez mais clandestinos, que a todos e a qualquer um vão oferecendo coca ou haxixe, com a lábia e o desplante de quem vende tremoços. E não se limitam a incomodar os passantes, chegam a abordar aqueles que, calmamente, jantam nas escassas esplanadas, chegando até, perante respostas negativas, a serem malcriados. E a polícia, que diz já conhecer de ginjeira todos aqueles “comerciantes”, confessa nada poder fazer porque os rapazes, quando levados para a esquadra, mostram que os pacotinhos que transportam em vez de cocaína levam aspirina ou pó de talco, e o dito haxixe não passa de uma massa de origem bem diversa. E que é por assim ser que a malta é deixada à solta pelo bairro, onde noite após noite vai enganando os mais incautos e incomodando os outros… E quanto a isso, ao que parece, nada se pode fazer porque de demissão em demissão chegámos a um estado final de impotência.

Cruzámos os braços.

Este é um breve retrato do Bairro Alto, um breve retrato do estado a que chegou a cidade de Lisboa. E agora, quererá o Futuro Senhor Presidente saber que soluções propõe a Associação de Comerciantes do Bairro Alto que possam conduzir a uma imprescindível mudança. Aqui as deixamos à sua consideração:

11 PROPOSTAS PARA O BAIRRO ALTO

1-Habitação e espaços públicos: Recuperar o parque habitacional e as respectivas fachadas dos edifícios, actualmente repletas de gatafunhos, cartazes, riscos de várias cores que não poupam azulejos nem cantarias e degradam o ambiente. Recuperar as calçadas danificadas e melhorar a iluminação pública. Devolver à cidade, ainda este verão, o jardim de S.Pedro de Alcântara.

2- Higiene: Repensar a organização da recolha dos lixos e acabar de vez com as “esquinas da porcaria” onde comerciantes e moradores deitam sacos de lixo, caixotes vazios e toda a espécie de porcaria, a qualquer hora do dia ou da noite. Retomar a lavagem das ruas.

3- Segurança: Continuar a desenvolver o policiamento de proximidade. Reorganizar o policiamento nocturno, sendo de estudar formas de vídeovigilância, já que a segurança deve ser uma prioridade tendo em conta que o Bairro Alto é o mais importante centro de sociabilização da cidade de Lisboa e um cartaz da cidade e do país.
É decisivo e urgente retirar das ruas os “dealers” e “falsos dealers” que enxameiam o bairro, em especial aos fins-de-semana.

4- Circulação e Estacionamento: Rever o plano de circulação automóvel tendo em conta a necessidade de criar alguns espaços pedonais. É urgente retirar o estacionamento que obstrui a entrada de algumas travessas (ex: Travessa Poço da Cidade para Rua da Misericórdia e Rua da Rosa), e impede a acessibilidade a carros de bombeiros e outros veículos de emergência, dificulta o acesso aos peões e ajuda a isolar o bairro que, pelas suas características de “ilha”, precisa de se abrir aos espaços circundantes, nomeadamente ao eixo Largo Camões/ Chiado.
Continuar a encontrar soluções para o estacionamento dos veículos de moradores e comerciantes já que as actuais são manifestamente caras e insuficientes. A criação de um parque na zona norte (Príncipe Real) deverá ser equacionada.
É urgente a que o elevador da Glória volta a funcionar permitindo assim o recurso ao parque subterrâneo dos Restauradores.

5- Acessibilidade: Rever o comportamento da EMEL cujos funcionários por vezes se comportam como “donos do bairro”, impedindo a entrada a comerciantes e moradores, por exemplo em períodos de renovação dos identificadores. Por outro lado será importante alterar o regulamento já este que não tem em consideração a especificidade de certos negócios, nomeadamente aqueles que dependem da distribuição dos produtos que comercializam.
É importante que o bairro conserve dentro de si pequenas empresas de actividades diversificadas a funcionarem durante o dia. Expulsá-las do bairro por via de um regulamento cego será um erro tremendo.

6- Comércio diurno: Recuperar e incentivar o comércio de proximidade e a restauração diurnas são também prioridades fundamentais. Daí que os espaços pedonais e a instalação de novas esplanadas sejam uma prioridade porque ajudarão a revitalizar a actividade diurna.

7- Comércio nocturno: A actividade nocturna e a dicotomia restaurantes/bares precisa de ser compreendida e estruturada. Basta de soluções fáceis feitas à base da proibições que só têm estimulado o aparecimento de negócios de “vão de escada” que funcionam de forma irregular, enquanto afastam investidores que poderiam trazer ao bairro um comércio de qualidade.
Por outro lado é fundamental que as autoridades compreendam a especificidade de alguns restaurantes e casas de pasto, com largas décadas de existência, aos quais não se podem fazer exigências técnicas e arquitectónicas impossíveis de concretizar. São negócios familiares em edifícios centenários que representam o típico e tradicional, tantas vezes invocado e nem sempre compreendido e apoiado.

8- Largada de turistas: Nos meses de verão são muitos os autocarros que, junto às entradas do bairro, largam turistas que vão jantar às Casas de Fado. É preciso criar condições para que este serviço aconteça com qualidade e dignidade, o que não está a acontecer. É necessário criar um local, devidamente preparado, para a paragem de tais autocarros.

9- Bairro de artistas: É essencial preservar a dimensão artística e cultural do bairro. Será importante estimular a criação de ateliers para jovens artistas, a habitação para jovens, e a instalação no bairro de empresas e associações vocacionadas para as actividades artísticas e culturais. A galeria ZDB ou a livraria Ler Devagar são dois exemplos que devem ser apoiados.
É indispensável que o prometido Centro de Artes a instalar no histórico edifício Notícias/Capital, com salas polivalentes e de diversa utilização, passe de promessa a realidade.

10-Bairro de jornais: É importante que o bairro preserve a memória de dois séculos de actividade jornalística. Talvez as antigas instalações de um jornal possam ser utilizadas para futuro Museu da Imprensa Portuguesa, podendo também servir de sede à Hemeroteca de Lisboa.

11- Requalificação social: O ordenamento e a requalificação das actividades comercias e do espaço público são importantes, mas devem ser desenvolvidas em paralelo com uma política de apoio aos moradores mais idosos, que são em número significativo, nomeadamente no que se refere à mobilidade e apoio à saúde. Também os mais jovens, tantas vezes atirados para a rua, precisam de apoio e de espaços onde possam desenvolver actividades ocupacionais. Neste capítulo o apoio ao Clube Rio de Janeiro não deve ser esquecido dado que, apesar de inúmeras dificuldades, oferece aos jovens a prática de actividades desportivas.

O futuro do Bairro Alto é indissociável do futuro da cidade de Lisboa. O que não será fácil nem simples, mas se no futuro houver coragem, projectos, determinação, espírito reformador então tudo poderá ser diferente. De outra forma continuaremos a trautear o velho refrão do “tudo isto é triste tudo isto é fado” e um destes dias estará o município a criar mais uma comissão, desta feita para a recuperação do Bairro Alto.

Atenciosamente

O Presidente da C.A da Associação de Comerciantes do Bairro Alto


Belino Costa

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