JOANA MARQUES ALVES MARIANA MADRINHA E RAQUEL CARRILHO30/11/2016 08:19
A insonorização dos espaços e a existência de um aparelho que permita monitorizar o ruído passam a ser obrigatórios, mas os estabelecimentos têm cerca de três meses para se adaptarem
Conciliar interesses em conflito: é esta a principal razão apresentada para a revisão do Regulamento de Horários de Funcionamento dos Estabelecimentos de Venda ao Público e de Prestação de Serviços no Concelho de Lisboa. Desta forma pretende-se que “a liberdade económica dos comerciantes e o direito ao repouso dos moradores” não continuem em rota de colisão.
Publicado em Diário da República a 28 de outubro, este regulamento entrou em vigor dia 7. No entanto, até à data, as diferenças ainda não se fizeram sentir de forma radical, até porque foram dados aos estabelecimentos 120 dias para procederem às necessárias adaptações. “Ainda não fui visitado por nenhuma inspeção”, contou ao i Hernâni Miguel, histórico da noite lisboeta que atualmente tem o Tabernáculo, na Rua de São Paulo.
Tal como o nome indica, são os horários de funcionamento que maior atenção merecem por parte deste documento que, em alguns casos, se limita a reiterar o que já havia sido decidido anteriormente. Assim, os estabelecimentos de restauração sem espaço de dança podem funcionar entre as 06h00 e as 02h00 do dia seguinte, todos os dias da semana. No grupo seguinte, dos estabelecimentos de bebidas sem espaço de dança, o horário continuará a ser entre as 12h00 e as 02h00 de domingo a quinta -feira, alargando até às 03h00 às sextas, sábados e vésperas de feriado – um horário que continua a preocupar Hernâni Miguel: “Se o Bairro Alto fechar todo às 02h00 ou às 03h00, estamos a mandar milhares de pessoas ao mesmo tempo para a rua. Faz mais barulho, certo?”
Já os estabelecimentos de bebidas e/ou restauração com espaço de dança poderão funcionar entre as 12h00 e as 04h00, todos os dias da semana. E as lojas de conveniência, aqui também contempladas, podem funcionar entre as 06h00 e as 22h00, também todos os dias da semana – podendo, no entanto, a Câmara Municipal de Lisboa (CML), a pedido das juntas de freguesia, alargar este horário.
Zona A vs Zona B Esta não é, de resto, a única exceção prevista. Antes do mais, todos estes horários só se aplicam à Zona A de Lisboa, que basicamente inclui toda a cidade exceto as zonas ribeirinhas sem presença habitacional. “Os estabelecimentos e as esplanadas instalados na Zona B, independentemente da atividade desenvolvida, têm horário de funcionamento livre”, pode ler-se. Aqui se incluem casos como o Lux ou espaços mais recentes, como o Eka Palace, em Xabregas. Esta distinção de zonas da cidade leva alguns empresários a desconfiar que a intenção a longo prazo será deslocalizar a animação noturna do centro de Lisboa para as zonas ribeirinhas e não habitadas.
Mas mesmo os estabelecimentos situados na Zona A poderão, juntamente com a junta de freguesia, requerer o alargamento do seu horário de funcionamento, isto desde que se verifiquem uma série de requisitos, entre os quais “os interesses dos consumidores, nomeadamente suprir carências no abastecimento de bens ou de prestação de serviços, contribuir para a animação e revitalização do espaço urbano ou contrariar tendências de desertificação da área em questão”; “situarem -se os estabelecimentos em zonas da cidade onde os interesses de determinadas atividades profissionais o justifiquem, designadamente zonas com forte atração turística ou zonas de espetáculos e/ou animação cultural”; “sejam respeitadas as características socioculturais e ambientais da zona e a densidade da população residente”, bem como “sejam rigorosamente respeitados os níveis de ruído impostos pela legislação em vigor, tendo em vista a salvaguarda do direito dos residentes em particular e da população em geral à tranquilidade, repouso e segurança”.
É o caso, por exemplo, das discotecas Tokyo, Jamaica, MusicBox e Finalmente que, de acordo com a Junta de Freguesia da Misericórdia, possuem extensão de horário até às 06h00 e que a presidente Carla Madeira acredita que continuarão a solicitar à CML a referida extensão, até porque “o regulamento é omisso no que a tal diz respeito.”
Fora isto, para a presidente da Junta de Freguesia da Misericórdia, este documento é “uma grande conquista” para si e para a freguesia. “Tinha-me comprometido para com os meus fregueses que iria levar esta questão para a frente e que chegaríamos a um consenso. É, por isso, com especial orgulho que vejo algo tão importante para a qualidade de vida desta zona da cidade ser colocado em prática. Sei que este regulamento não irá resolver no imediato todos os problemas, mas é um passo essencial para a sua resolução. O caminho faz-se caminhando e estamos disponíveis para trabalhar esta solução de forma gradual. Estas medidas contribuem para o equilíbrio tão desejado e para uma coexistência mais pacífica entre moradores, comerciantes e visitantes, uma vez que vêm permitir uma maior conciliação entre a função residencial e a função comercial do nosso território.”
Mas se os estabelecimentos podem pedir o alargamento dos seus horários, também os moradores, as juntas ou as forças policiais podem requerer o contrário, alegando a necessidade de “repor a segurança ou proteção da qualidade de vida dos cidadãos, designadamente no direito ao descanso, à tranquilidade e ao sono destes.”
O que é um limitador de som? Para assegurar o cumprimento de todas estas regras, a CML definiu ainda regras de funcionamento específicas. E é aqui que este documento promete não ser tão pacífico, ainda que as negociações tenham incluído os próprios comerciantes.
Logo no primeiro ponto desta lista de regras lê-se que a CML pode estabelecer “um regime de horário específico para venda de alimentos ou bebidas para consumo no exterior dos estabelecimentos, para a totalidade ou para zonas específicas” da cidade – uma ideia reforçada no ponto 2, onde se diz que “a câmara pode definir zonas específicas onde é proibida a saída de bebidas do interior dos estabelecimentos para a rua a partir da 01h00”.
Quanto ao ruído, todos os estabelecimentos que funcionem após as 23h00 com música – seja ela amplificada ou acústica, de instrumentos ou mesa de mistura – são obrigados a insonorizar o espaço, a fazer uma avaliação acústica que comprove o cumprimento da legislação sobre ruído e a garantir que portas e janelas estão fechadas. Ora, tendo em conta que praticamente todos os bares do Bairro Alto e do Cais do Sodré funcionam de porta aberta, ainda está por perceber como se traduzirá, na prática, esta norma.
Estes estabelecimentos são obrigados ainda a colocar um limitador de som com registo, que deve ser aprovado pela CML antes de ser instalado e que permitirá monitorizar o ruído em tempo real. Em termos técnicos, o referido limitador deve, entre outros aspetos, recolher e controlar os valores de nível sonoro; arquivar um historial com ano, mês, dia e hora em que se realizaram as últimas programações; possuir um sistema de verificação que permita detetar tentativas de manipulação do equipamento de música ou do equipamento limitador que, a ocorrerem, deverão ficar armazenadas na memória interna do equipamento; detetar possíveis tentativas de “abafamento” do microfone – há relatos de espaços que, no passado, tentaram colar pastilhas elásticas em medidores de decibéis para assim baixar os valores registados. Os referidos equipamentos terão ainda um sistema que corta a música caso o limitador esteja desligado, bem como enviarão automaticamente os dados armazenados, permitindo assim monitorizar remotamente e em tempo real os horários e níveis sonoros dos estabelecimentos noturnos, através de uma plataforma da CML. Todos os custos inerentes a este aparelho e ao seu funcionamento serão suportados pelos proprietários do espaço.
As coimas por incumprimento destas normas podem ascender aos 15 mil euros, enquanto as coimas relacionadas com abuso nos horários de funcionamento podem chegar aos 25 mil euros.
Para o presidente da Associação dos Comerciantes do Bairro Alto, Hilário Castro, o sistema que controla os decibéis “é uma desvantagem para os incumpridores e para aqueles que querem manter o mesmo sistema, que acaba por penalizar toda a gente. Mas é uma vantagem para os restantes porque, tendo este sistema, se houver uma queixa ou uma anomalia, há um comprovativo que está certificado pela câmara e que protege o comerciante”.
Luís Represas, dono do Xafarix, em Santos, um dos bares que seguramente enfrentarão problemas no que diz respeito aos níveis de som, preferiu não se pronunciar ainda, tal como outros proprietários contactados pelo i. Já Hernâni Miguel garante que já existem “muitos bares e discotecas” com este sistema que a CML quer agora tornar obrigatório. “Mas eu não quero internet no meu espaço. E penso que para isto é necessário ter internet, senão como vão detetar o ruído?” Dúvidas que passarão a ser esclarecidas pelo Conselho de Acompanhamento da Vida Noturna, cuja criação está prevista também neste novo regulamento.