29 janeiro 2012
LISBOA! REPÚBLICA! POPULAR!
por Patrícia Cintra
No bairro mais alto da capital fomos descobrir a história para além dos bares e discotecas, numa viagem que começou à tarde e se prolongou noite dentro...
Tem fama e algum proveito do que dele se diz. Sítio de prostituição? Sim, já foi. Local mal afamado desde o século XVIII? Também. Mas foi exactamente aqui que nasceram os jornais mais emblemáticos do país, numa geografia curiosa que inclui mais de uma dezena de redacções em pouco mais de meia dúzia de ruas engalfinhadas...
«Pretendemos mostrar o Bairro Alto enquanto património histórico e cultural e dinamizar a Hemeroteca como 'biblioteca do dia-a-dia'», atalha Elizabete Rocha, responsável pela iniciativa, enquanto o grupo se concentra à porta do número 3 da Rua São Pedro de Alcântara. Vendido à Câmara de Lisboa em 1969, o edifício que actualmente acolhe a Hemeroteca - também conhecido como Palácio dos Segundos Condes de Tomar - serviu, até essa data, de morada aos descendentes de Costa Cabral, de tribunal, de clube masculino e até de salão de bailes.
Enquanto subimos a escadaria da entrada, os olhos fogem para os vitrais que estão nas paredes e a encimar os degraus. «A entrada actual corresponde à localização das cavalariças e estas janelas permitiam que a luz da rua entrasse. O mesmo se passa com os vitrais junto ao tecto, que infelizmente estão menos visíveis». O motivo deve-se às obras de requalificação que impediram a degradação, mas que lhes anularam a função, restando-nos imaginar como seriam aqueles espaços vistos à luz dos pequenos vidros coloridos... Para incentivar ainda mais a imaginação, Elizabete fala-nos do Royal British Clube que também ali 'morou'. Além de clube privado para cavalheiros ingleses, entre 1926 e 1966, também serviu de bordel: «Por detrás dos vitrais estavam as meninas, um pouco como nas montras de Amesterdão, no Bairro Vermelho...».
Vencidos os últimos degraus, exploramos o primeiro andar que ainda conserva o estilo inicial. «Na sala dos bailes temos as quatro artes e alguns animais exóticos». Ao lado está a sala da música: «No tecto temos uma harpa e um violoncelo, mas o mais interessante é que as partituras que se vêem são executáveis!».
A Hemeroteca tem guardadas cerca de 500 mil publicações e mais de 20 mil títulos, «incluindo o Correio Braziliense, de 1808, que entrava em Portugal às escondidas». Este periódico, também conhecido por Armazém Litterario, foi entre 1821 e 1822, o órgão das aspirações de independência brasileira. Do acervo fazem ainda parte a Gazeta de Lisboa, a publicação mais antiga - que data de 1715 -, o Arquivo Pitoresco, um conjunto de crónicas do final do século XIX sobre etiqueta feminina, a Gazeta de Lisboa de 1715 e o primeiro número do Diário de Notícias, (DN), de 29 de Dezembro de 1864.
No miradouro de São Pedro de Alcântara abre-se uma janela para uma das mais bonitas vistas da cidade. À direita, o Tejo faz o seu percurso tranquilamente enquanto os cacilheiros 'unem' as duas margens. Por trás espreita-nos a estátua de Eduardo Coelho, um dos fundadores do Diário de Notícias, juntamente com Tomás Quirino Antunes. A fama de Eduardo Coelho começa depois de escrever A Vida de Um Príncipe (1860), um romance que conta a vida do Infante D. Afonso, filho do rei D. João II e herdeiro ao trono.
Elizabete adianta que o DN «teve a particularidade de ser o primeiro a receber anúncios, atribuindo-se ainda a Eduardo Coelho a ideia de criar a figura do ardina, que também está aqui representado nesta escultura». E acrescenta: «Os ardinas vinham buscar os jornais e vendiam-nos por toda a cidade apregoando os seus nomes: 'Lisboa, República, Popular!'». O Diário de Notícias situava-se na antiga Rua dos Calafates, que hoje adquiriu o nome do jornal. Entretanto o periódico mudou-se para a Avenida da Liberdade, para um prédio reconhecido com o Prémio Valmor.
Rua acima chegamos ao Príncipe Real. «Este espaço começou por ser uma lixeira. Ainda se começaram a construir as fundações de um palácio que não chegou a ser concluído devido ao terramoto de 1755». Nessa altura, tiveram aqui aquarteladas as tropas que prestaram auxílio à população após o tremor de terra. Mais tarde, em 1835, tornou-se num mercado público e finalmente ganhou estatuto de jardim quando D. Maria I teve o seu primeiro filho, D. José - o Príncipe Real.
No entanto, o espaço também é conhecido por Jardim França Borges, jornalista e defensor das ideias republicanas. Em 1890 fundou O Mundo, utilizando-o como arma de arremesso contra o regime monárquico. No jardim, o monumento que o retrata é da autoria de Maximiano Alves, de 1925, que o fez acompanhar da sua tão amada República.
Já a descer, passamos pela Rua da Palmeira e vamos direitos à Rua do Século, mais um reduto do jornalismo nacional. Foi aí, no Palácio dos Viscondes de Lançada que, a 4 de Janeiro de 1881, nasceu o jornal que dá nome à rua. «Frequentado no século XIX por ilustres políticos e intelectuais, como Almeida Garrett, Júlio Castilho, Bulhão Pato ou José Estêvão», viu o seu último número sair a 6 de Dezembro de 1976, com quase um século de vida...
Mais um pulinho e estamos na Rua Luz Soriano, de onde a 7 de Abril de 1921 saiu o primeiro exemplar do Diário de Lisboa. Elizabete explica que este periódico «foi fundado por Joaquim Manso e teve imensos directores de renome como Mário Mesquita ou José Cardoso Pires». A mesma rua viu ainda surgir a I série do Correio da Manhã, em 1910, Os Ridículos, fundado no início do século XX, e na mesma linha o Sempre-Fixe, um semanário humorístico criado a 13 de Maio de 1926.
Pela Rua Luz Soriano passou também o jornal Record, que se situava no Palácio Relvas, uma construção oitocentista, que no século XIX se tornou residência do coleccionador Carlos Relvas. Mais adiante, passamos pela Rua da Queimada, onde foi a redacção do Jornal Diário, e vamos direitos ao Palácio Ribeiro Palhares, onde ainda está A Bola, fundada em 1945.
Com o movimento noctívago a acelerar resta-nos encontrar um local para petiscar. E que tal o Snob? Um dos lugares mais frequentados por jornalistas para jantar fora de horas, onde a especialidade são os deliciosos bifes da casa. E as notícias que ali correm...
patricia.cintra@sol.pt
Informações HEMEROTECA DE LISBOA R. São Pedro de Alcântara, 3 Tel. 213 460 792
http://sol.sapo.pt/inicio/Vida/Interior.aspx?content_id=9301