21 janeiro 2012

"NÃO QUEREMOS DEIXAR O FRÁGIL MORRER"

"O Bairro Alto tem-se ressentido imenso nos últimos anos e está a atravessar uma fase muito má. (...) Por isso, enquanto esta crise não passa, decidimos abrir apenas quando há eventos marcados."

Declarações de Rodrigo Leão sobre o bar Frágil à revista Tabú, de 20 de janeiro de 2012, que se publica com o jornal Sol. Aqui.

Uma utopia chamada Frágil

por Raquel Carrilho


Foi o marco que revolucionou o Bairro Alto. Ponto de encontro de artistas, o Frágil foi, durante anos, o local mais concorrido da noite lisboeta. Em 2012 cumpre 30 anos e rema contra a maré de um bairro que se deteriora a olhos vistos e que ditou que o 126 da Rua da Atalaia passe a abrir apenas para festas programadas. O Frágil vive agora um dia de cada vez.
«Já a conheço, até a conheço nua!». Foram estas as palavras de Mário Soares, quando, em 1990, na inauguração de uma exposição, dirigida por Henrique Cayatte e dedicada a Cassiano Branco, lhe apresentaram Margarida Martins, hoje presidente da Abraço, à data porteira do Frágil. O então Presidente da República referia-se ao convite para uma festa que, em 1988, tinha circulado por Lisboa com uma fotografia de Margarida Martins seminua.

Nos anos 80 e 90, era este o Frágil. Mais importante que qualquer galeria de arte, palco ou passerelle. «Era uma sala de cultura», recorda Margarida. Ali se fez, aliás, parte da história cultural de Lisboa e do país. «Foi a primeira vez que fomos modernos e cosmopolitas à noite. Ali tudo era surpresa, novidade…», assegura Catarina Portas, jornalista, dona d’A Vida Portuguesa e a preparar um livro sobre o Frágil. «No Frágil houve de tudo: namoros, casamentos, traições, mortes... Era uma sala de estar de amigos. Havia uma grande excitação no ar, era um país que era novo e que passava por ali. Havia urgência de viver», acrescenta Catarina, que tinha 16 anos quando começou a ir ao Frágil, porque «ironicamente era o único sítio onde me deixavam entrar porque o marido da minha mãe era cliente de antiguidades do Manuel».

O Bairro Alto já tinha tradição de se deitar tarde. Mas até ao final dos anos 70 era, maioritariamente, zona de fadistas, marinheiros, prostitutas e jornalistas. Mas este Bairro decadente começou a receber outros inquilinos, vindos essencialmente do Conservatório. Gente do teatro, cinema, música e dança. A modernidade começava a soprar pelas ruas do bairro através de figuras como Zé da Guiné ou Hernâni Miguel, e lugares como o Souk, a RockHouse e o Jukebox. Era o arranque dos anos 80, e Lisboa começava a descobrir outros ritmos, embalada pela liberdade.

Na Rua da Atalaia resistiam ainda a Padaria de São Roque e a Tasca da Gaivota, assim conhecida porque ali existia um destes especímenes preso por um cordel a uma mesa, para afugentar cães e gatos. Foram estes dois espaços que chamaram a atenção do empresário de antiguidades Manuel Reis – homem tímido, que nunca dá entrevistas –, que os adquiriu. As obras foram longas e, entretanto, o empresário abre o restaurante Pap’Açorda.

O Frágil acaba por ser inaugurado a 15 de Junho de 1982. Da padaria ficaram os azulejos, mas tudo o resto ganhou outra vida, cheio de veludos, colunas douradas e peças que Manuel Reis tinha descoberto em mercados, como uma cortina de veludo vermelho pintada, de um restaurante na Torre Eiffel. Foi, segundo Catarina Portas, «a primeira noite de todas as outras noites que se seguiram em data».

A surpresa começava logo à porta onde, em vez da tradicional figura masculina, se encontrava uma mulher: nos primeiros três meses a decoradora Minda Fonseca e depois a cantora Anamar e Margarida Martins, que acabou por se tornar uma das grandes referências do Frágil. De tal forma que, numa festa de Carnaval, foi feito um boneco igual a si, vestido com uma saia enorme por baixo da qual os convidados tinham de passar para entrar.

Margarida trabalhava como secretária numa empresa de construção civil e ajudava o ex-marido no Zodíaco, uma espécie de sala de espectáculos. Numa visita ao Frágil conheceu Manuel Reis e acabou convidada para assumir, com Anamar, a porta da discoteca – onde esteve até 1991, altura em que fundou a Abraço. A ‘Guida Gorda do Frágil’, como era conhecida, não esquece o «mar de gente» que se acumulava ali, a tentar entrar. «Chegaram a tentar subornar-me com cinco contos para entrarem e ainda hoje há pessoas zangadas comigo». Dizia-se que era mais fácil entrar no Pentágono.

No Frágil reuniam-se diferentes gerações de artistas, intelectuais, músicos, advogados, arquitectos, fotógrafos, políticos. Carlos Paredes costumava ir beber um sumo de laranja logo ao início da noite. Jorge Palma, Alexandra Lencastre, Ana Salazar, Ana Vidigal, Jean Paul Gaultier, Eduarda Abbondanza, José Ribeiro da Fonte, Al Berto, Miguel Esteves Cardoso, Rogério Samora, Eduardo Prado Coelho, eram visitas regulares. «Havia noites em que era tanta gente que nem se punha os pés no chão», conta Catarina Portas. Não havia espaço para preconceito. Era local de liberdade – de sentimentos, opções sexuais, posições políticas e artísticas, vestuário. E de excessos: «Bebíamos bastante, portanto há algumas memórias vagas».

Os amigos da casa eram regularmente convidados a intervir nela, como Cabrita Reis e Rui Sanches, na decoração. Outros realizaram ali filmes, deram concertos, desfiles de moda. Em 1992, os Ena Pá 2000 caricaturaram as ambições dos ‘comuns mortais’ em ‘Baum’: ‘Eu quero ir ao Frágil sexta-feira/Eu quero ser amigo da porteira’. Mas esta família Frágil não se juntava apenas para a festa. Quando algo corria mal, também estavam lá. Como em Agosto de 1990, quando um ofício da Secretaria de Estado da Cultura, então nas mãos de Pedro Santana Lopes, decretou a proibição de dançar e a DGE encerrou o espaço. Quando reabre, dias depois, Manuel Reis respondeu enchendo a pista com bancos. E os clientes sentados, claro.

Nestes anos de ouro do Frágil, nas décadas de 80 e 90, as festas eram épicas. Logo no primeiro aniversário, a casa invadiu a rua com um telão com Jane Russell pintada e pessoas a perder de vita. No 10.º aniversário, o espaço já era pequeno demais, e ocupou o armazém da Tabaqueira. Não havia limites para surpreender. Uma noite, Manuel Reis arranjou uma cadeira antiga de barbeiro, instalou-a no meio da pista de dança e pôs António Variações a cortar cabelos. Pouco depois o cantor morreria. «Foram os primeiros anos da sida, em que começou a acontecer a pessoas que conhecíamos. A morte dele foi a morte de um da casa», confessa Catarina.

Em 1997, Manuel Reis deu por terminada uma época e rumou a Santa Apolónia, ao gigante Lux, que inaugurou em 1998. O bairro vivia outros tempos, Lisboa era uma cidade diferente. Mas houve um grupo de então clientes habituées que tomou conta do espaço mítico. «Soubemos alguns meses antes que o Manuel Reis não ia continuar no Frágil. Histéricos, começámos logo a pensar ‘como vamos sobreviver sem o Frágil?’. Esta infantilidade própria da idade fez com que a Ana Matos Pires [uma das três sócias actuais] lançasse a ideia de nos juntarmos para comprar o Frágil. Devemos ter pensado que ser dono do Frágil era tão divertido como estar lá, de copo na mão. Mas era uma responsabilidade grande pegar naquela casa e não dar cabo dela. Entretanto juntámo-nos seis clientes e comprámos o prédio todo, que estava a cair de podre e recuperámos. Investimos tudo naquela utopia, por amor», desabafa Ana Carolina, mulher de Rodrigo Leão, os outros dois actuais sócios.


Mas os tempos mudaram. O bairro, o único de Lisboa que não precisa de mais nomes, democratizou-se. Os bares multiplicaram-se, os vãos de escada foram ocupados por lojas de conveniência que vendem álcool sem controlo e que fazem com que as ruas acabem carregadas de multidões de garrafa na mão. A redução de horários indiscriminada. A oferta gratuita de droga a cada esquina. A falta de segurança. «O Bairro Alto de hoje é uma vergonha. É só lixo e insegurança sem controlo. Como é que os bares, com imensas despesas, podem competir com isso?», questiona Margarida Martins. Por isto, o 126 da Rua da Atalaia viu-se obrigado a mudar de estratégia, a abrir portas apenas quando tem eventos agendados.

Fica o saudosismo, o mesmo que fez Catarina Portas chorar nas últimas visitas ao Frágil. O mesmo que existe quando se presencia o fim de uma época. É certo que a vida é toda para diante, mas há histórias que não se apagam. E há um sítio que, como a jornalista Fernanda Câncio descreveu numa crónica no blogue Jugular, é «o lugar fundador do meu país – o país que queria então, nos anos 80, e quero ainda que Portugal seja: livre, laico, igualitário, capaz de cumprir tudo o que Abril de 1974 me prometeu». Esse sítio é o Frágil.

raquel.carrilho@sol.pt (com Alexandra Ho)
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